Revista Oeste - Capa da Semana - Carta aos Leitores

05/03/2021 10:57

Carta ao Leitor

As aflições da vida, as ameaças da tecnocracia e o comprometimento das liberdades

Aquele que é o mais belo dos Evangelhos registra uma frase de Jesus Cristo que deveria ser repetida todas as manhãs por todo ser humano: “No mundo tereis aflições” (João, capítulo 16, versículo 33). A sociedade contemporânea, no entanto, parece empenhada em eliminar as aflições de nossa vida. Buscamos total segurança. Não queremos ser surpreendidos por intempéries, acidentes, epidemias. Uma vez asseguradas as necessidades básicas, o Ocidente passou a almejar a garantia do risco zero. Para tanto, delegou ao Estado o controle da ordem geral, dos códigos sociais, das regras de relacionamento interpessoais. Como resultado, temos um arcabouço institucional que exerce um nível mais elevado de intromissão do que as monarquias do ancien régime.

A operacionalização desse sistema de controle está nas mãos de tecnocratas. Esses técnicos, supostamente experts em suas áreas de atuação, na prática mandam mais que muitos dos líderes democraticamente eleitos. É o tecnototalitarismo em ação. A tendência é notável não apenas em organizações transnacionais, mas até em governos que tentam criar mecanismos de defesa contra a ameaça. Na reportagem de capa “O novo totalitarismo”, a editora Branca Nunes e o repórter Artur Piva explicam como e por que a pandemia exacerbou o fenômeno. Eles vão fundo ao discutir a ideologia do lockdownismo, e escrevem: “A imposição dessas medidas restritivas parecem menos um erro gigantesco e mais o desdobramento de uma ideologia política fanática, um experimento político que ataca as premissas centrais da democracia e da civilização ocidental.”

O culto a um modelo de sociedade coordenado por uma tecnocracia centralizada está presente também no novo livro de Bill Gates, How to Avoid a Climate Disaster (“Como Evitar um Desastre Climático”). Para Gates, as mudanças climáticas são uma grande oportunidade de negócios — até aí, a leitura macro do quadro parece liberal, até mesmo libertária —, mas as soluções passam por algo como um “projeto global”. No capitalismo verde de Gates, como mostra Tim Black, da Spiked — revista britânica com a qual Oeste tem parceria exclusiva no Brasil —, observam-se preocupantes tons ditatoriais.

No Brasil, sem exageros, é possível estabelecer um paralelo entre o momento pelo qual passamos e a época em que o AI-5 vigorava. “É claro que não há gente presa de madrugada nem centros de tortura operados por funcionários do governo; não há censura oficial à imprensa, e os atos da autoridade pública estão sujeitos à apreciação da Justiça”, diz J. R. Guzzo. “Mas as liberdades individuais e coletivas estão sob uma onda de ataques mais viciosos, dissimulados e amplos do que aqueles que qualquer ditadura costuma praticar.”

Curioso é que a intelectualidade não demonstra desassossego com essa conjuntura. Os cérebros da academia brasileira estão mais empenhados em propagar discursos identitários que reverberam o radicalismo cada vez mais assombroso dos progressistas norte-americanos. Nesse aspecto, é um espanto o projeto de lei de Joe Biden sobre “identidade de gênero” e orientação sexual — eis a tecnocracia metendo o bedelho nas relações sociais. Com a reconhecida competência, a analista política Ana Paula Henkel ocupa-se do tema.

Será que há razões para cultivar alguma esperança? Mesmo os céticos talvez devam lembrar como termina o 33º versículo do capítulo 16 do Evangelho de João: “Tende bom ânimo. Eu venci o mundo.”

Boa leitura.

Os Editores.